Versando sobre os limites previstos para a temperatura cor correlata das fontes destinadas à Iluminação Pública
Por Silvia Maria Carneiro de Campos
É importante ao público conhecer os processos que tangem a nossa participação na sociedade. A ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas) é um foro livre, qualquer pessoa pode participar e contribuir com suas argumentações no corpo técnico, mas é necessário apresentar dados.
A revisão da Norma de Iluminação Pública NBR 5101 vem acontecendo desde 2017 e venho contribuindo decisivamente na apresentação de materiais científicos relacionados à poluição luminosa, inclusive, no âmbito de minhas pesquisas que já foram anteriormente publicadas na Revista Lume.
Poluição luminosa
Neste período, acabei me tornando membro do Comitê Internacional da Dark Sky Association, e também faço parte do grupo de Defensores do Céu escuro na Associação Dark Sky. A participação é voluntária e aqui no Brasil mantemos um canal educativo no YouTube sobre os impactos negativos da poluição luminosa em diferentes circunstâncias.
Primeiramente, cabe informar que a Comissão Técnica de Estudos da ABNT tem se empenhado em programar ações alinhadas com boas práticas regulatórias adotadas mundialmente. Destacamos a adoção das políticas públicas para a mitigação dos danos causados pela poluição luminosa em inúmeros países, tais quais Austrália, Áustria, Bélgica, Bulgária, Canadá, Chile, Chipre, Nova Zelândia, Croácia, República Tcheca, Dinamarca, Estônia, Finlândia, França, Alemanha, Grécia, Hungria, Islândia, Irlanda, Itália, Letônia, Liechtenstein, Lituânia, Luxemburgo, Malta, Holanda, Noruega, Polônia, Romênia, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, Suécia, Suíça e Reino Unido.
A poluição luminosa está na agenda da ISO 26000 e também nas diretrizes das Mudanças Climáticas que aborda junto com outros impulsionadores de mudanças globais, incluindo outras formas de poluição, mudanças do clima e mudanças no uso da terra.
Documentos relacionados às diretrizes recomendadas pela união europeia aos países que já contemplam as políticas públicas para a mitigação de danos causados pela poluição luminosa, tratada na literatura internacional como ALAN (Artificial Light at Night), são: reduzir os impactos da luz artificial à noite em animais selvagens, bem como recomendações para adaptar o projeto de iluminação e operação.
Recomendações específicas para determinados setores:
- Evitar estritamente a luz artificial à noite, onde e quando possível.
- Instalar iluminação artificial apenas onde for necessário e onde tenha função específica e propósito definido por razões de segurança.
- Usar o número mínimo de intensidade de luzes para atender aos objetivos de iluminação.
- Desligar as luzes quando não forem necessárias (use tecnologia inteligente).
- Minimizar o ofuscamento (BUG).
- Reduzir o brilho do céu.
- Reduzir e evitar a luz intrusiva nas janelas residenciais.
- Eliminar a iluminação de fachada (também conhecida como embelezamento urbano ou iluminação decorativa).
- Utilizar o mínimo absoluto de iluminação nas áreas de patrimônio natural.
- Auditar edifícios existentes, postes de iluminação etc., e realizar retrofits para resolver problemas com iluminação desnecessários sempre que for possível.
- Fazer Avaliação de Impacto Ambiental (EIA) formal para os efeitos da poluição luminosa na vida selvagem local como parte do processo de planejamento para novos empreendimentos ou quando instalações existentes estão sendo adaptadas.
Quanto à Temperatura de Cor Correlata (TCC) e intensidades da luz:
- Usar o nível de luz mais baixo necessário.
- Usar luzes de cores mais quentes (limitando o comprimento de onda mais curto da luz ultravioleta e luz azul).
- Usar luminárias com uma temperatura de cor correlata abaixo de 2200K.
- Se for necessária luz branca, use LEDs brancos quentes (<2700K).
- Minimize as emissões de luz azul ou UV (abaixo de 500 nm).
- Proteja as superfícies emissoras de luz da visão direta, blindagem (fullcutoff).
- Use luminárias totalmente blindadas com aparas de luz externas, incluindo postes de luz e luzes externas de edifícios, de modo que nenhuma luz ascendente seja emitida.
- Instale blindagens nas luzes existentes.
- Proteja as superfícies adjacentes, se necessário, para evitar que reflexos excessivos da luz adicionem brilho no céu.
- Recue as luzes externas nos beirais do telhado.
Referente à direção da luz:
- Elimine a luz direta para cima.
- Monte as luminárias voltadas ao solo.
- Use luminárias com uma porcentagem de emissão do hemisfério superior abaixo de 0,2% (de preferência 0%) e se certifique de evitar direcionar a luz na linha do horizonte.
- Considere as propriedades reflexivas do ambiente receptor na montagem das fontes de luz.
Quanto à localização da luz:
- Considere a localização de luminárias externas o mais próximo possível do chão, levando em consideração o derramamento de luz intrusa.
- Não coloque luminárias longe da área a ser iluminada.
- Minimize a projeção de luz além da zona útil.
- Evite o derramamento de luz além da linha da propriedade.
Temperatura de cor
Pela regulamentação atual, considera-se luz branca aquela que possua TCC entre 2700K a 6500K, portanto, 2700K é luz branca, e foi estabelecido em consenso pela comissão de estudos da ABNT como o limite de TCC a ser instalado no espaço noturno à noite para iniciarmos um processo de mitigação de danos causados pela poluição luminosa ao ser humano e ao meio ambiente
Muitos engenheiros de aplicação de projetos de iluminação pública atualmente afirmam que é necessário mimetizar o uso de luz artificial à noite na faixa da “luz solar” em 5500K. No entanto, é importante destacar dados científicos e estatísticos sobre o assunto, por exemplo, quanto aos horários relativos aos acidentes de trânsito. Caso a faixa da temperatura de cor da luz em 5500K fosse um fator de redução de acidentes, não teríamos estatisticamente mais acidentes de trânsito durante o dia, como podemos observar na Figura 1.
Figura 1
Fonte: URBES Trânsito e transportes. Dados Estatísticos Sobre Acidentes de Trânsito em Sorocaba de 2008 a 2010.
Também é preciso esclarecer que a luz do dia sofre alterações em TCC. Com base nos dados do estudo de Frederico de Moura Carneiro, consultor Legislativo da Área XIII de Desenvolvimento Urbano, Trânsito e Transportes, sobre “Estatísticas de Acidentes de Trânsito Ocorridos entre 2016 e 2018, com Foco no Número de Mortes e Faixa Etária das Vítimas”, foi identificado que as maiores vítimas do trânsito são pedestres, ciclistas e condutores de motocicletas, conforme podemos observar na Figura 2, fato relevante para a adoção de obrigatoriedade na iluminação positiva nas faixas de pedestres aplicada na nova versão da norma 5101. É necessário também prever a melhora da iluminação das chamadas zonas de conflito, onde há pedestres e ciclistas.
Figura 2
Fonte: “Estatísticas de Acidentes de Trânsito Ocorridos entre 2016 e 2018, com Foco no Número de Mortes e Faixa Etária das Vítimas”, de Frederico de Moura Carneiro
Também podemos observar neste mesmo estudo do Senhor Frederico de Moura Carneiro e em muitos outros disponíveis para a organização de dados estatísticos no país que a iluminação não é a grande responsável pelos acidentes de trânsito nas cidades, e sim a ingestão de bebidas alcoólicas e imprudência dos motoristas. O uso de telefone celular ao volante também é um grande fator de acidentes. (Figura 3)
Figura 3
Fonte: “Estatísticas de Acidentes de Trânsito Ocorridos entre 2016 e 2018, com Foco no Número de Mortes e Faixa Etária das Vítimas”, de Frederico de Moura Carneiro
A variação da temperatura de cor da luz é fato notoriamente reconhecido entre os profissionais da iluminação (Figura 4). Sabe-se também que o período que compreende o sol a pino, com 5500K, é um horário não recomendado à exposição direta por se tratar de uma luz muito agressiva. Recomenta-se evitar a luz do sol entre 10h e 15h.
Figura 4
Fonte adaptada: Silvia Carneiro 2023
Li ao menos 34 estudos a respeito dos benefícios da luz amarela ou óculos com filtros amarelos para motoristas durante uso noturno, chuva e eventos sazonais com neblina, e consideramos esse ponto na comissão técnica da ABNT. Inclusive, oftalmologistas recomendam óculos com filtros de luz azul para maior conforto visual das pessoas, pois suas lentes são amarelas ou âmbar. Portanto, a escolha de luz na temperatura de cor da luz na faixa de 1800K a 2200K é mais adequada à visão humana.
Impacto da luz na saúde
Precisamos também entender o contexto que a luz artificial branca causa nas espécies diurnas. Existem fotorreceptores nos olhos não visuais conhecidos no ser humano como melanopsina, que está presente em todos os seres vivos do planeta, calibrado em aproximadamente 480nm, que é o espectro azul da luz.
Uma grande preocupação é com o mosquito Aedes Aegypti, que na presença da luz artificial à noite com a composição branca acima de 2200K entende que é dia, e continua a picar;
O estudo “Artificial Light at Night Increases Aedes aegypti Mosquito Biting Behavior with Implications for Arboviral Disease Transmission”, realizado pelos pesquisadores Samuel S. C. Rund, Laura F. Labb, Owen M. Benefiel, and Giles E. Duffield, do Department of Biological Sciences e do Eck Institute for Global Health, ambos da University of Notre Dame, apontou que a exposição desses insetos à ALAN aumenta o comportamento noturno de alimentação sanguínea.
Esta descoberta destaca que a poluição luminosa pode estar afetando a transmissão de arboviroses, como dengue, febre amarela, chikungunya e zika, e tem implicações para a aplicação de contramedidas para o controle do mosquito vetor. São questões relevantes inclusive ao Ministério da Saúde por impactarem o Sistema Único de Saúde Federal.
As arboviroses têm aumentado em demasia no Brasil. Segundo dados da Anvisa, do Ministério da Saúde, os casos tiveram um aumento de 162,5% em 2023 na comparação com o ano de 2021. Pode-se dizer que provavelmente esse crescimento está relacionado à troca da iluminação pública das cidades – antes, com vapor de sódio âmbar – para a temperatura de cor de 4000K e 5500K. Vale muito aos interessados estudar a literatura relacionada e também os artigos do Professor Alessandro Barghini.
A Comissão de revisão da Norma técnica da ABNT recebeu a consultoria de diversos pesquisadores brasileiros e suas contribuições sobre os impactos da luz artificial, entre eles: a Professora Dra. Regina Markus Pekelmann, da Universidade de São Paulo, premiada pela ONU; a Prof. Dra. Betina Martau, da Universidade Federal de Porto Alegre; o Prof. Dr. Ruy Soares, da Universidade de São Paulo; o Prof. Dr. Alessandro Barghini; além de outras inúmeras contribuições de convidados do Projeto Tamar, ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) e LNA (Laboratório Nacional de Astrofísica).
Os organismos evoluíram sob condições de luz consistentes, que incluem dia e noite, os ciclos claros e os ciclos escuros, conhecidos como ritmos circadianos.
A luz natural é utilizada pela vida selvagem como um recurso e para obter informações espaciais e temporais sobre seu ambiente. A luz é usada para permitir a visão, por exemplo, para forragear, enquanto a escuridão pode ser usada para fornecer segurança, portanto o uso da luz artificial afasta diversas espécies e impacta a biodiversidade.
A luz e a escuridão da noite são responsáveis por ativar mecanismos essenciais para regular a fisiologia humana e animal, a produção hormonal, metabolismo, secreção de melatonina, imunocompetência, crescimento e comportamento, incluindo a sincronização de relógios biológicos.
Existe extensa literatura no assunto e eu poderia citar centenas, mas vou citar um artigo liderado pelo professor Martin Moore-Ede, Diretor do “Circadian Light Research Center” de Stoneham, EUA, publicado na Revista Frontiers “Lights should support circadian rhythms: evidence-based scientific consensus”. Este artigo é uma revisão cuidadosa de 2.697 pesquisas sobre os impactos negativos da luz artificial, recomendo a leitura.
É cada vez mais reconhecido que a síntese e secreção hormonal é relacionada ao ritmo circadiano, o que significa que a perturbação desses relógios internos levará a desequilíbrios hormonais e outros problemas. Em sua revisão recente, Falcón et al. (2020) descrevem como: “… a maioria das funções básicas dos organismos vivos é controlada pelo relógio biológico. Esses relógios dependem absolutamente do ciclo de 24 horas com alternância entre o claro e o escuro para sincronizar sua produção hormonal através de processos bioquímicos, fisiológicos e comportamentais para o bom funcionamento e saúde dos organismos vivos. Assim, alterar o ciclo natural de entre a luz do dia e a escuridão da noite, não pode ser isento de consequências para os organismos”. Animais diurnos, noturnos e crepusculares podem reagir de forma diferente à ALAN.
Quando eu era criança, costumava brincar no canteiro de flores de minha mãe. Havia joaninhas, abelhas, grilos, minhocas, louva-deus e, ao cair da noite, apareciam os vagalumes, de voo lento, piscando suas luzes. Era possível observar as estrelas no céu; lembro-me de localizar as Três Marias e o Cruzeiro do Sul.
Depois de 50 anos, a urbanização de áreas ricas em biodiversidade traz consequências negativas para inúmeras espécies, uma vez que aumento da luz artificial à noite tem impacto negativo nas espécies noturnas e aumenta o tipo de vigília das espécies diurnas.
Por meio de um processo conhecido como fotoperiodismo, a duração do dia funciona como uma sugestão para muitos animais, indicando a migração e a época para reprodução, que precisa ocorrer em momento apropriado. As interferências causadas pela luz artificial à noite podem, portanto, afetar comportamentos devastadores nas espécies (Longcore e Rich, 2004). A duração da noite e o luar podem afetar os padrões de sono das espécies diurnas. (van Hasselt et al., 2021). Por exemplo, as reduções do sono (NREM) causadas naturalmente por noites mais curtas e luar também podem ser desencadeadas no uso da luz artificial à noite e, portanto, a privação do sono pode ser um potencial impacto da poluição luminosa, particularmente para espécies diurnas, inclusive os processos reprodutivos podem ser interrompidos pela luz artificial à noite.
Uma metanálise publicada recentemente sobre as consequências biológicas da ALAN concluiu que “ciclos de luz natural estão sendo corroídos em grandes áreas do globo” e que isso induz forte resposta fisiológica, modificando padrões de atividades diárias e reprodutivas, com “respostas especialmente importantes em relação aos níveis de produção hormonais, o início da atividade diária em espécies diurnas e características da reprodução, como o número de descendentes, predação e cognição” (Sanders et al., 2021).
Pesquisas futuras precisam considerar como a luz artificial à noite afeta a biodiversidade, incluindo genótipos, comunidades, ecossistemas e paisagens.
Silvia Maria Carneiro de Campos
Arquiteta com pós-graduação em Iluminação, MBA Master em Arquitetura e Iluminação, Lighting Designer Sênior na IRIS Luminotécnica, pesquisadora, professora e membro da Internacional Dark Sky Association.
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Literatura adicional sobre o sistema visual humano e a melhor adaptação à luz amarela
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